ARNALDO JABOR
Não adianta mais analisar p... nenhuma no Brasil de hoje. Tudo voltará ao início como cobra mordendo o próprio rabo, tudo continuará sob anestesia, mas sem cirurgia, como disse uma vez Mário Henrique Simonsen.
Tudo era previsível neste súbito Haiti que brotou no Nordeste, variando do deserto para o tsunami de lama, das "vidas secas" para o afogamento, sempre atingindo os mesmos pobres diabos sem voz, sem rosto, sem destino, que vagam nas cidades desgraçadas que o subfeudalismo dos barões nordestinos cultiva.
A análise tradicional não serve; só resta oferecer-me como testemunha inútil desse crime secular sem autores visíveis.
O autor não é Deus, não é a natureza; os homens teceram essa desgraça de agora, não por seus atos malignos apenas, mas por uma distribuição de causalidades inexplicáveis que cria o crime sem sujeito - uma difusa culpa que acaba inocentando todos.
No entanto, a verdade brasileira aparece nessas tragédias visíveis - soterramentos, alagamentos, bebês morrendo em berçários de hospitais assaltados.
Por outro lado, a verdade sempre esteve ali, silenciosa, dissimulada nos miseráveis vilarejos de Alagoas e Pernambuco, na paz trágica do nada, na mansidão da ignorância, no silêncio da miséria seca, aquela paz vazia que tranquiliza ladrões e demagogos, a paz da ignorância de vassalos toscos e obedientes.
Mas, de repente, jorrou a verdade com as águas das represas e açudes arrebentados. Tudo que não queríamos ver bate em nossos olhos grudados na TV, vendo o Maradona de terninho ou o Dunga com sua cara espessa e dura. A verdade aponta os responsáveis pela tragédia que certamente vão esconder que 57% das verbas para prevenção de catástrofes desse tipo foram gastos na Bahia, para favorecer o candidato do governo para governador.
Também não vão explicar por que só 14% das verbas preventivas (R$ 71 milhões apenas) foram destinados aos Estados de Alagoas e Pernambuco.
Agora, com Lula e sua clone correndo para aparecer no teatro de lama, para impedir a perda de votos, o governo vai gastar mais de R$ 2 bilhões para consertar o que era evitável (ah... e que bons negócios se farão...).
A catástrofe estava encravada nas fazendas fantasmas, nos municípios controlados por barões, na indústria da seca - não só a seca do solo, mas a seca mental -, na qual a estupidez e a miséria são cultivadas para criar bons serviçais para a burguesia boçal.
A catástrofe estava se armando enquanto soavam as doces camaradagens corruptas em halls de hotel, os almoços gordurosos, as cervejadas de bermudão, as gargalhadas, as "carteiradas" autoritárias, os subornos e as chaves de galão.
As catástrofes estavam se armando durante os jantares domingueiros, na humilhação das esposas de botox, no respeito cretino dos filhos psicopatas, na obediência dos peões, dos capatazes analfabetos. A catástrofe se armava no sarapatel de ideias que vão desde um leninismo tardio até este "revival" de um sindicalismo getulista a que assistimos.
Os indícios desse desastre se veem na recente frase irada que Lula lançou: "Os impostos no Brasil têm de ser altos sim, do contrário não temos Estado".
Esqueceu-se de dizer que os impostos que recolhe são gastos para pagar a folha de milhares de pelegos empregados, nos desvios de verbas públicas. Esqueceu de dizer que a catástrofe se armava nos últimos sete anos quando gastaram R$ 8 bilhões em propaganda oficial, sem contar os gastos de empresas estatais.
A catástrofe também se armou aos poucos com a frente unida da utopia, que permite que todos os erros sejam cobertos por um manto de "fins justificados" - a frente unida dos três tipos de radicais: os radicais de cervejaria, os radicais de enfermaria e os radicais de estrebaria. Os frívolos, os loucos e os burros. Uns bebem e falam em revolução, outros alucinam e os terceiros zurram, todos atacando o "capitalismo do mal", quando justamente esse mal (que também existe) é a única bomba capaz de arrebentar nosso estamento patrimonialista de pedra.
A catástrofe se arma para futuras tragédias, com a má utilização dos bilhões de dólares que entram em nossa economia, canalizados para países emergentes, pois estão sendo sugados pelo Estado inchado e inchando.
A realidade (se é que isso ainda existe no país) é que a tragédia fixa, silenciosa e invisível se transformou numa tragédia bruta e retumbante. Só isso aconteceu no Nordeste.
E para nós restam o horror e a pena, porque os fatos estão muito além da piedade. Ninguém tem palavras para exprimir indignação, ou melhor, ninguém tem mais indignação para exprimir em palavras.
Resta-nos a impotência diante do fato consumado e um sentimento nobre, mas que chega sempre depois da desgraça: a solidariedade.
O que é a solidariedade? Como sentir a dor dos outros? Sou solidário aqui ou apenas faço meu artigo semanal? Por que me comovo? Será que me comovo mesmo, será que me imagino ali na lama, procurando pedaços de comida no lixo e aí me purifico com minha indignação impotente?
Como posso saber o que sente um homem-gabiru, faminto, analfabeto, que só é procurado pelos poderosos sacanas para ser "laranja" em roubalheiras para a cumbuca das oligarquias?
Como posso saber da alma de um desgraçado limpando um pedaço de pão no lodo para dar para o filho bebê, com seu sofrimento mudo, enquanto os culpados dizem "que horror" nos prédios de luxo nas praias de Pajuçara e Boa Viagem ou se escondem nos cabides de emprego de Brasília?
Como se sentem os homens sofridos que vemos chorando na TV, sob o som de gritos da Copa do Mundo, uivos de vuvuzelas e patetas pulando de alegria patriótica?
Os diques e os açudes que se romperam são os diques rompidos da mentira política sistemática. Então, pode ser que a história se mova um pouco e que a consciência de nosso absurdo aumente. Mas, isso... só por um tempo... Depois, novas catástrofes voltarão a se armar...
terça-feira, 29 de junho de 2010
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