A UPEC se propõe a ser uma voz firme e forte em defesa da ética na política e na vida nacional e em defesa da cidadania. Pretendemos levar a consciência de cidadania além dos limites do virtual, através de ações decisivas e responsáveis.


domingo, 13 de junho de 2010

Complexo de Massada

Como seria de se esperar, o episódio do Mavi Marmara suscitou a habitual onda — de proporções tsunâmicas — contra Israel.

Respondê-las faz parte da responsabilidade de toda e qualquer pessoa com um senso de justiça mínimo. O conflito do Oriente Médio não constitui uma “questão judaica”. Menos ainda seria o caso de esperar que os judeus defendam Israel unanimemente — mesmo porque há judeus que não se identificam com Israel, muito pelo contrário. Exemplos não faltam: Noam Chomsky, Norman Finkelstein, Tony Judt, Neve Gordon, entre outros. Inversamente, comentadores como Pilar Rahola, Reinaldo Azevedo, João Pereira Coutinho e Richard Kemp, longe de constituírem exceções, mostram que o conflito do Oriente Médio mobiliza tanto intelectuais como não intelectuais, indignados com o linchamento constante de Israel nos meios de comunicação.

Tanto no Brasil como pelo mundo afora, embora sem o aparato de repercussão da grande mídia, a demonização de Israel vem sendo denunciada com argumentos variados, mas sempre a partir da perspectiva ética em contraposição à ideológica. A ideologização do conflito, aliás, pertence ao quadro da estratégia de certa esquerda e uma de suas finalidades é a de demonizar os críticos da demonização, costumeiramente agraciados com epítetos destinados aos hereges — “reacionário”, “direitista”, “imperialista” (um tanto ou quanto démodés), “neo-liberal” (mais atual) ou (e principalmente), “sionista”, proferido como se fosse uma ofensa. Nada mais coerente. Além de responder às habituais omissões, distorções, duplo critério e inversões da relação causa-efeito, modus operandi clássico do anti-sionismo, tarefa que se tornou rotineira e até tediosa, seria interessante perguntar pela sua motivação, dissimulada pela alegação de praxe — o protesto contra a opressão do povo palestino.

Um dos problemas enfrentados pela crítica à demonização de Israel é que a calúnia tem uma virtude importante — a brevidade. Aliás, quanto mais enxuta melhor, visto que a história do conflito e os detalhes de cada novo episódio exigem raciocínio e capacidade de análise, atitudes abominadas pelo demonizador, quer assumido ou vestido em pele de cordeiro. O demonizador opta pela descontextualização. Se for jornalista, a justificativa é facílima: escassez de espaço, que corresponde à escassez de tempo do leitor. A desinformação é assim favorecida nas duas extremidades (emissor-receptor) da comunicação, quer se trate da mídia escrita ou eletrônica. (No último caso, o mecanismo da condensação, descrito por Freud, se exacerba e favorece ainda mais a censura, exatamente como acontece no sonho).

A facilidade com que as imagens são editadas justifica ironicamente o slogan auto-promocional dos fotógrafos — “uma imagem vale por mil palavras”. Certamente... e sobretudo para quem considera o pensamento uma tarefa árdua, incômoda e perigosa. Assim, tanto a resposta às omissões, distorções e inversões acima mencionadas, como a análise da sua motivação, dificilmente poderiam pautar-se pelo famoso ditado latino “o bom, se breve, duas vezes bom”.

Não obstante, o ideal inatingível da brevidade se torna menos distante se algo como um compêndio estiver à mão. Nesse sentido, os comentários feitos pelos colunistas da assim chamada grande imprensa têm o mérito de resumir o contencioso. Além disso, como os respectivos jornais esperam de seus articulistas um tom mais educado, se possível ostentando o verniz da objetividade e do equilíbrio, é possível deparar com tentativas de argumentação e não apenas acusações panfletárias.

O estilo folhetinesco, que se isenta de argumentar, típico dos crentes ou fanáticos de qualquer espécie, pode ser exemplificado por um texto como o de Breno Altman — O Estado de Israel é a origem do ódio, publicado no site Opera Mundi e no Portal Vermelho, e reproduzido no site da Folha. Não há dúvida de que esse ex-abrupto falharia em preencher os requisitos estipulados pelos manuais de redação dos jornais ‘respeitáveis’. Na Internet, o judô pode ser substituído pelo vale-tudo. Já os comentários de Clóvis Rossi (‘Em choque de vontades de ferro quem tem mais força mata mais’, bem como a sua apresentação verbal no site da Folha — Israel contra o mundo gera uma nova Massada) são representativos do que poderia ser denominado bon ton — expressão francesa que se enriqueceu com sua transposição/tradução para um sintagma mais atual — a atitude “politicamente correta”.

Talvez o exemplo máximo dessa linha de análise, modelo freqüentemente seguido pelo colunista típico da ‘grande imprensa’, seja Tom Friedman, editorialista do The New York Times.Como uma biruta do cenário político, os textos de Friedman costumam mostrar em que direção o vento sopra. Variações podem acontecer, mas raramente se distanciam muito. Em relação às evidências mais incontestes do conflito árabe-israelense, atualizado pelo incidente do Mavi Mármara, os dezesseis parágrafos de “Em choque de vontades de ferro quem tem mais força mata mais” são dignos de um estudo de caso. Não há sequer um que deixe de incorrer em algum tipo de distorção, omissão, duplo critério e inversão da relação causa-efeito. O título é revelador. As seis primeiras palavras (“Em choque de vontades de ferro...”) destinam-se a estabelecer a equivalência moral entre Hamas e Israel. Depois de assegurar essa espécie de “empate técnico”, a seqüência, “...quem tem mais força mata mais” transfere o ônus pelo aspecto mais condenável do confronto, a perda de vidas, a Israel.

O consumidor é honestamente informado daquilo que vai ler. O teor do artigo segue à risca o que seu título anuncia.A bússola da equivalência moral orienta boa parte da argumentação — assim, o regime turco acusa Israel de terrorismo de estado e Israel, reciprocamente, embora menos direto, aponta a ligação entre os tripulantes do Mavi Mármara que se confrontaram com os comandos, e a Al Qaida. Tanto ao Hamas como a Israel são atribuídas intenções de aniquilação mútua. Essas “vontades inamovíveis” constituiriam a causa do conflito.

O relatório Goldstone, citado sem mencionar os questionamentos de que foi objeto, confirma essa linha do artigo, visto ter responsabilizado tanto Israel como o Hamas por crimes de guerra em 2009. Na seqüência, tendo apresentado suas credenciais de imparcialidade, Rossi toca o lado B. Israel é condenado por empregar força desproporcional — expressão celebrizada na guerra de Gaza, travada no ano passado, que o artigo prefere referir por “invasão israelense”. O argumento é que, por ser mais forte, o exército do estado judeu é mais letal (“quem tem mais força mata mais”).

A crítica não se detém nesse ponto. Mesmo quando Israel não está usando implacavelmente seu poder de fogo, nem por isso deixa de incorrer em altitudes inadmissíveis: “A maioria dos israelenses abandonou de vez qualquer tipo de preocupação com seus vizinhos palestinos. Quer mantê-los à maior distância possível, seja com um muro na Cisjordânia, seja isolando Gaza por terra, mar e ar“. Em momento algum o artigo cita as alegações israelenses. O texto se assemelha a esses exercícios de preenchimento de espaços em branco usados em provas ou manuais escolares — com a diferença de que não alude minimamente à sua existência. Rossi omite ao leitor praticamente tudo o que é relevante para entender a motivação dos protagonistas. A sua intenção obedece à finalidade contraditória de dividir a responsabilidade pelo conflito e depois inclinar a balança, colocando o peso maior da culpa no prato israelense. Entretanto, os fatos — e às vezes os próprios atores — desmentem flagrantemente a análise do articulista e preenchem com negrito , caixa alta e sublinhado os “espaços em branco” do seu texto.

Os estatutos do Hamas pregam a destruição de Israel e acrescentam, sem subterfúgios, que essa é a própria razão de ser do movimento islâmico. Em termos comparativos, o não reconhecimento do estado judeu chega a ser um eufemismo. Trata-se de algo muito mais grave, que obviamente Rossi não menciona.]

A recusa do reconhecimento de Israel, por si só, não explica porque durante oito anos os militantes do Hamas e de outras facções bombardearam as cidades israelenses próximas a Gaza com milhares de foguetes “qassam”. O ataque à população civil israelense, além de constituir um crime de guerra, ilustra fielmente o que os estatutos do “movimento de resistência islâmica” declaram. Inversamente, é impossível encontrar algo remotamente semelhante quer nas leis quer nos princípios ou finalidades de qualquer partido político ou instituição israelense.

Disparados aleatoriamente, os qassams causaram ferimentos, mutilações e mortes cujo número só não foi maior porque todas as residências em Israel têm, por lei, um quarto de concreto reforçado, e as cidades dispõem de abrigos. Além disso, Israel desenvolveu um sistema de alarma que permite antecipar, ainda que em pouquíssimos minutos, o impacto dos foguetes e morteiros. O interesse em defender sua população constitui uma das razões para entender porque Israel “mata mais” — é que seus civis “morrem menos”. A outra é que o Hamas, à imagem do Hezbollah e de vários outros grupos armados islâmicos, usa a população civil como escudo para acusar Israel de crimes de guerra — a mesma tática empregada pelos militantes no Mavi Mármara.

É impossível que Rossi não saiba disso. Ele poderia até não concordar com o argumento, apesar das inúmeras evidências, mas ao tratar dessa questão o profissional que tenha um grau mínimo de isenção, exigido pela ética jornalística, não pode deixar de mencioná-lo. Entretanto, o artigo dá a entender que Israel matou deliberadamente os ativistas do IHH. Em relação à intervenção militar de 2009 em Gaza, o termo ‘invasão’ é completamente capcioso. Ocorreu uma operação destinada a diminuir a capacidade bélica do Hamas e de outras milícias, bem como dissuadir seus líderes de atacar civis israelenses. Por outro lado, não há qualquer punição coletiva em andamento. Alimentos, medicação, água e combustível são fornecidos por Israel. Apenas material de uso militar é objeto de proibição. Como se não bastasse, doentes cujo tratamento não pode ser feito a contento em Gaza (ou na Cisjordânia) são levados a hospitais israelenses. Vê-se claramente que o artigo de Rossi escamoteia do leitor tudo o que é importante para compreender o conflito e principalmente as incomensuráveis diferenças de atitude entre Hamas e Israel.

O mesmo enfoque foi utilizado em relação à “flotilha da liberdade”. Das seis embarcações, cinco foram desviadas de Gaza sem qualquer confronto, e dirigidas ao porto de Ashdod. A respectiva carga, depois de examinada, foi enviada à Faixa (sendo recusada pelo Hamas). Fato que por si só poria em dúvida a atribuição de matar deliberadamente os militantes do Mavi Mármara. Do ponto de vista israelense, não havia qualquer motivo para prender os integrantes da flotilha que aceitaram renunciar ao desembarque em Gaza. A pressão internacional mencionada por Rossi na gravação, atribuída por ele ao conjunto das embarcações, limitou-se à libertação dos tripulantes do Mavi Mármara que atacaram os soldados. Essa atitude — a pressão internacional em favor dos agressores — deveria ser objeto de crítica e não comentada aprobatoriamente, se de fato o articulista é crítico em relação à violência, e sobretudo à violência assassina.

Mas o seu relato demonstra que o ataque aos israelenses, civis ou militares, é entendido como completamente justificado. Que Israel se defenda, aí reside o problema. No Mavi Mármara houve o confronto, inesperado para os comandos israelenses, cuja intenção não era matar mas encaminhar o navio para Ashdod, como havia sido feito com os outros cinco barcos da flotilha e posteriormente com o Rachel Corrie, sem qualquer problema. Segundo todas as evidências possíveis, e não somente as declarações feitas pelos comandos israelenses, mas igualmente vídeos do confronto, bem como armas brancas, bastões de ferro e de madeira, e outros instrumentos de agressão, além de depoimentos insuspeitos dos próprios militantes do IHH (ONG turca reconhecidamente associada ao Hamas e que iniciou as hostilidades), a agressão, gravíssima, que deixou vários militares israelenses bastante feridos, partiu dos próprios tripulantes e obrigou os comandos a atirar para proteger suas vidas.

O texto de Rossi constitui um manual completo de desinformação. A omissão das razões pelas quais Israel estabeleceu o bloqueio de Gaza, a natureza do material que não pode entrar na Faixa, as razões da intervenção de 2009, a finalidade de destruir Israel conforme estipulada nos estatutos do Hamas, o fato de que Israel retirou os assentamentos de Gaza (que em nada prejudicavam os habitantes árabes) em 2005, não havendo portanto sequer a sombra de um pretexto para o bombardeio das cidades israelenses, a ausência de qualquer incidente em seis das sete embarcações da flotilha, o ataque de tripulantes do Mavi Mármara aos comandos israelenses, o compromisso de Israel de encaminhar a carga para Gaza, depois de examinada (o que foi efetivamente feito), tudo isso é omitido pelo artigo e escamoteado do leitor.

O comentário verbal (Israel contra o mundo gera uma nova Massada) veicula uma análise cuja tese central apresenta o emprego da força, por parte de Israel, como ilegítimo, justificando a condenação do mundo inteiro. Uma das fontes da argumentação baseia-se na declaração de um funcionário do governo americano, não identificado, citado pelo site Político, que Rossi considera especialmente confiável, segundo quem “...nós não apenas somos os únicos que os apoiamos, mas também os únicos que acreditamos neles”.

A finalidade da menção a esse depoimento é evidente: Rossi quer dar a impressão de que o apoio americano a Israel é tão suspeito como insustentável. Afinal, se “todos” condenam Israel, é porque o “ataque aos barcos da ajuda humanitária à Faixa de Gaza” constituiria uma inegável violação do direito internacional que Israel consegue burlar graças aos Estados Unidos. Tanto seria assim que o pedido, ou exigência, da OTAN, instituição insuspeita de apoiar o terrorismo, de que Israel investigue o incidente, seria a prova acabada de que o país estaria completamente isolado. Se Israel pode alegar com certa razão, prossegue Rossi, que a atitude hostil da ONU refletiria o peso do grande número de países árabes e muçulmanos, em compensação a condenação unânime de que foi objeto constituiria a prova insofismável da impossibilidade de justificar suas ações. O que, conclui, motivaria uma espécie de sentimento de perseguição por parte dos judeus, justificado parcialmente pela referência à omissão geral perante o Holocausto, trauma nacional que teria motivado o desenvolvimento de uma capacidade militar excessiva. O correspondente poderio militar, sem precedentes em toda a história do estado sionista, teria por conseqüência a “rapidez no gatilho”, ou seja, a propensão dos soldados com a estrela de Davi a atacar mais do que a defender.

Isso, por sua vez, geraria o isolamento de Israel, decorrente da descrença, por parte do “mundo”, face aos motivos alegados para justificar essa atitude, que Rossi descreve como belicista (sem usar o termo) e que se manteria apenas devido ao apoio americano. Na medida em que o Tio Sam estipulasse o preço de sua proteção na forma de concessões aos palestinos, algo que setores majoritários da população israelense tenderiam a não aceitar, a sobrevivência de Israel passaria a correr perigo. O título da fala de Rossi refere o episódio de Massada, referente à fortaleza onde 1500 judeus resistiram, em 73 DC, ao cerco de 15 mil romanos durante cerca de dois anos. (Os defensores de Massada, vencidos pela falta de víveres e de água, suicidaram-se para não cair na mão dos invasores).

Rossi enfatiza que “Israel (está) contra o mundo” e que o “complexo de Massada”, causa do isolamento, é quase geral na sociedade israelense. A prova é que o juramento proferido pelos recrutas quando ingressam no exército inclui a frase: “Massada não cairá novamente”. Antes de problematizar a análise de Rossi, que maximiza os fatores desfavoráveis ao estado judeu e minimiza ou simplesmente omite todas as evidências, históricas e atuais, contrárias a seus argumentos, é relevante constatar que a própria narrativa exibe contradições — presentes em alguns dos termos usados e também nas alusões, analogias e lacunas.

Assim, ele compara os romanos, que destruíram Jerusalém e exilaram a população judaica em 70 DC, ao “resto do mundo”, atualmente. Os romanos eram, na época, a grande potência mundial (ou, mais precisamente, detinham a hegemonia na região que hoje é chamada de Europa e Oriente Médio). Estaria Rossi admitindo — mediante uma analogia cujas implicações não advertiu suficientemente — que o “mundo” tem por intenção destruir Israel e exilar sua população? Se a fortaleza de Massada representou a capacidade de defesa de um povo contra o poder expansionista que pretendia submetê-lo, e se durante o Holocausto a omissão e a cumplicidade da Europa (palavras do próprio Rossi, das quais seria difícil discordar) conduziram ao extermínio de dois terços dos judeus europeus, então que os judeus israelenses, ao contrário do que aconteceu nas décadas de 30 e 40 na Europa, agora possam defender-se (também palavras do próprio Rossi), constituiria algo condenável?

Rossi utilizou as expressões “mais atacam do que são atacados” e em seguida “podem se defender indefinidamente”, acrescentando que essa capacidade de defesa dependeria do apoio norte-americano. Entre “mais atacam do que são atacados” e “podem se defender indefinidamente” há uma diferença semântica considerável, acentuada pelo advérbio — independentemente de que essa capacidade de defesa seja atribuída ao apoio americano. Porque o verbo defender tem a implicação direta de que se está sendo atacado. Rossi reconhece assim, mediante as próprias palavras. que em chamativo contraste com seus raciocínios “oficiais” (“ataca mais do que defende”), Israel é um país cuja perspectiva é ser atacado sem limite de tempo. A afirmação em questão dificilmente poderia estar desvinculada da história do conflito, cuja menção é cuidadosamente evitada.

A emenda com que Rossi procura justificar a contradição é pior do que o soneto. Ao procurar diferenciar a situação de Massada da atual com o comentário de que agora Israel faz “uso da força para defender e atacar”, Rossi recorre a um argumento cômico. De fato, como algum país se defenderia, ou atacaria, sem “o uso da força”? Por outro lado, Rossi menciona o Holocausto e reconhece que os judeus não puderam defender-se da máquina assassina nazista. Não há, nessa descrição, qualquer crítica aos judeus. A conclusão é inevitável: como no infame comentário atribuído aos americanos em relação aos “seus” índios, judeu bom é judeu morto. Quando o judeu se defende, transforma-se em assassino. Em termos estritamente militares, a questão se apresenta de forma bem diferente. Não é necessário ser analista militar para saber que o ataque preventivo pode constituir uma forma de defesa, e não somente em função do conhecido aforismo “a melhor defesa é o ataque”.

O caso do bloqueio de Gaza é um excelente exemplo. Há pouco tempo atrás foram capturados dois navios carregados de equipamentos militares para o Hamas, provenientes do Irã. Nem o mais ingênuo dos observadores deixaria de suspeitar que a função da “flotilha da liberdade”, romper o bloqueio, esteja a serviço da estratégia de abrir caminho para que na seqüência o Hamas seja abastecido de armas por via marítima.

Aliás, Rossi cita o apoio americano a Israel mas não menciona o do Irã ao Hamas, ilustrando mais uma vez o emprego do critério “dois pesos, duas medidas”. É patente que Rossi, nas entrelinhas, revela saber muito mais do que diz. É inacreditável que qualquer jornalista minimamente informado, por menor que seja a sua capacidade de relacionar fatos e processos históricos com dados demográficos e econômicos, possa ignorar a verdadeira correlação de forças no Oriente Médio. Somente a adoção de um viés partidarista inconteste justificaria a descrição segundo a qual Israel é o “lado forte” do conflito e emprega força desproporcional, ao mesmo tempo em que as organizações palestinas são retratadas como vítimas e é omitido o apoio e a instigação permanentes do mundo árabe/muçulmano contra o estado judeu.

A sobrevivência de Israel, conforme atestado por todas as guerras e campanhas terroristas deflagradas pelos estados e milícias que pretenderam e pretendem destruí-lo, se deveu precisamente à sua capacidade de defesa. A inversão da relação causa-efeito alcança o seu ponto máximo no que se refere a essa questão. Aqui Rossi, como a maioria dos comentaristas que segue a linha anti-israelense, dá mostras de uma notável capacidade de infringir a lógica mais elementar. Bastaria comparar a população do mundo muçulmano, ainda que restringindo-a aos estados da Liga Árabe mais Irã, Paquistão e agora possivelmente a Turquia, com a de Israel. A diferença, no mínimo, é de sessenta para um — muito provavelmente bem mais do que isso. Em acréscimo, não há como deixar de levar em conta a influência do petróleo e dos petrodólares na economia ocidental bem como a porcentagem cada vez maior de presença muçulmana nos países mais influentes da Europa ocidental — com as respectivas conseqüências eleitorais, que afetam o comportamento das lideranças políticas.

Por si só, esses fatores explicam a “unanimidade” (mais suposta do que real) contra Israel, algo que, mais uma vez, um analista de política internacional conseqüente não teria como ignorar. Ainda no capítulo das lacunas, Rossi omite que o bloqueio de Gaza tem respaldo internacional. O seu relato restringe-se à menção da atual pressão internacional para a sua suspensão — que, por sua vez, e pelo menos por enquanto, se limita a algumas declarações de líderes europeus e americanos proferidas no calor da agitação promovida pelo mundo muçulmano. Trata-se de uma reação mais do que habitual, quase que de praxe, por parte do ocidente, sempre pronto a condenar Israel antes de mais nada. As razões do reconhecimento internacional ao direito de Israel para determinar o bloqueio não são referidas. Tampouco é mencionado que o Egito também fechou as suas fronteiras com Gaza. Omite-se que as mercadorias provenientes do Egito são contrabandeadas por túneis (via pela qual o Hamas também recebe armamento), enquanto Israel fornece alimentos, medicamentos, combustível e água oficialmente.

Ao afirmar que a maioria dos israelenses quer manter os seus vizinhos à maior distância possível, seja mediante a construção de um muro (Cisjordânia) ou através do bloqueio (Gaza), não há qualquer referência aos ataques terroristas que motivaram essa atitude... Em relação a muros, cercas e bloqueios, Rossi não cita vários outros exemplos (o muro separando Irlanda do Norte e Eire, o da fronteira entre México e Estados Unidos, o muro construído pela Espanha em Gibraltar, o que está sendo erigido pela Arábia Saudita na fronteira com o Iêmen e pela Índia na fronteira com o Paquistão, para citar alguns). O bloqueio americano a Cuba tampouco é mencionado, embora não se trate de um embargo puramente militar.

Tampouco são mencionadas as sanções impostas ao Iraque, equivalentes a um bloqueio, antes da guerra do Golfo, e as que estão sendo agora elaboradas em relação ao Irã, das quais as militares já se encontram em vigor. O uso do critério ‘dois pesos duas medidas’, indício claríssimo da falta de isenção, não poderia ser ilustrado de maneira mais flagrante. Caberia acrescentar o que já foi dito tantas vezes, ou seja, que uma “flotilha (ou comboio) da liberdade” se justificaria muito mais em relação a Cuba, Coréia do Norte, Irã, Mianmar , Sudão e a várias outras ditaduras africanas , de preferência a Gaza.

No que se refere ao tratamento de minorias, o regime de Erdogan poderia receber um prêmio de hipocrisia. A Turquia não somente se nega a reconhecer o genocídio de um milhão e meio de armênios, no início do século XX, como ainda ameaça os estados que ousam mencionar o fato. E massacra atualmente a sua população curda que exige autonomia...Esses temas dificilmente constarão dos artigos de comentaristas internacionais como Clóvis Rossi. Receberão, no melhor dos casos, algumas rápidas menções, a chamada referência “en passant”... Cabe perguntar por quê. ------------------ O que leva diretamente à questão da motivação de Rossi — e da quase totalidade dos comentaristas internacionais encarregados de analisar o conflito do Oriente Médio nos principais meios de comunicação.

Obviamente, parece utópico esperar do jornalista típico da grande imprensa uma análise que leve em conta vários aspectos relevantes para entender a situação. A regra é omitir os fatores de maior peso, como as características sócio-econômicas dos países do Oriente Médio, os efeitos do fim da hegemonia européia e o início da guerra fria, a história das alianças cambiantes entre França, Inglaterra, União Soviética, (agora a Rússia) e obviamente os Estados Unidos com os países da região, a extensão da análise a conflitos que ultrapassam o âmbito do problema árabe-israelense, o papel desempenhado pelo petróleo e pelos petrodólares nas relações internacionais, a distribuição de poder na ONU. Seria pedir demais?

Poderia parecer que a superficialidade das análises se deve tanto à falta espaço como à precariedade de conhecimento histórico, mas é bem mais provável que a explicação resida além. A consideração dos fatores determinantes, por menor que fosse, alteraria completamente a concepção dominante nas redações, pautada pela demonização de Israel. Se tais questões fossem levadas em conta, no mínimo caberia suspeitar que as ditaduras que oprimem as populações islâmicas estão em frontal oposição com os interesses de seus povos (algo que sempre foi reconhecido pela esquerda, com exceção do conflito do Oriente Médio). O fato de que as ditaduras medievais da região utilizam Israel como válvula de escape para as tensões sociais — estratégia mais do que comum no caso de regimes tirânicos ou autoritários — não teria como deixar de vir a tona.

A causa mais provável da demonização do estado judeu por parte da mídia reside no que poderia ser chamado de “sentimento de missão jornalística”, atitude que gera a busca de uma grande causa capaz de mobilizar os leitores. No caso do Oriente Médio, trata-se de angariar unanimidade em torno a um ideal de justiça, apresentado de maneira muito peculiar. A posição ideológica subjacente apóia-se, sem sombra de dúvida, no marxismo, tão diluído como se quiser, mas sempre orientado, fundamentalmente, pela bússola do anti-americanismo. A derrota na guerra fria provocou uma sensação de fracasso nas hostes da esquerda, abrangendo as esferas política, sindical e acadêmica. A decepção abalou a adesão às teses da economia centralizada e do poder absoluto do estado sobre a sociedade, tornando o discurso canônico irrelevante. Não é necessário mencionar o perigo que isso representou para as respectivas lideranças, desacreditadas em suas análises e previsões.

Em termos éticos, não foi menor o choque causado pelas revelações estarrecedoras sobre os porões dos regimes comunistas da Europa Oriental e da Ásia, às quais se acrescentaram as informações sobre a repressão em Cuba.

É possível traçar uma analogia com os efeitos da débâcle na primeira guerra mundial sobre a direita alemã, que usou o anti-semitismo como afrodisíaco para ressuscitar o sentimento de orgulho nacional, atribuindo a culpa da derrota aos judeus. Similarmente, a vitória do capitalismo no confronto com o socialismo mudou o programa político e econômico dos partidos de esquerda, que abandonaram as metas mais ambiciosas relativas à transformação social e se inclinaram na direção de um pragmatismo pouco atraente para seus eleitores e ativistas. Tornou-se necessária então uma grande causa internacional para substituir o ideal revolucionário, perdido ou adiado. Surgiram as ONGs de direitos humanos, que cumpriram o seu papel durante algum tempo. O fim do apartheid e das ditaduras latino-americanas criou um vácuo que precisava ser ocupado — tanto para manter o financiamento das ONGs como a mobilização dos militantes em torno aos partidos e movimentos de esquerda. Israel prestou-se admiravelmente a esse papel. A aliança com os Estados Unidos, o desenvolvimento tecnológico, as suas vitórias militares contra países cuja população é considerada representativa do terceiro mundo (independentemente dos lucros extraordinários provenientes do petróleo), o confronto mais geral entre o islamismo e o ocidente, que aos olhos da esquerda substituiu a guerra fria, a semelhança entre o monolitismo religioso do mundo muçulmano e a religião de estado prevalecente nos países socialistas... tudo facilitou a ideologização do conflito entre o estado judeu e seus vizinhos, e não menos a diferença cultural e econômica entre Israel, Gaza e Cisjordânia, absurda mas convenientemente equiparada ao conflito capitalismo/proletariado.

A esquerda pôde então transferir para o cenário internacional — mais precisamente o Oriente Médio — a sua concepção de mundo, tornada obsoleta em relação às sociedades ocidentais (tanto as européias como as latino-americanas). O que acontece na mídia é uma conseqüência dessa “weltanschauung”, ou visão de mundo, predominante nos círculos acadêmicos e que se estende às outras regiões do trabalho intelectual, inclusive a indústria da informação. O fracasso da previsão marxista — o fim do capitalismo, a instauração da utopia socialista — motivou a negação da realidade ao mesmo tempo em que exigiu um bode expiatório à altura da decepção.

Ninguém melhor do que o estado judeu para desempenhar esse papel. A velha associação “judeu-usurário”, “judeu-capitalista”, “judeu-explorador”, “judeu-assassino de Cristo”, que jamais um intelectual anti-sionista reconhecerá enquanto motivação, desempenha um papel importante na demonização de Israel. O clássico álibi do anti-semita (“tenho amigos judeus”) foi transformado em “os próprios judeus condenam Israel” — tida por autorização suficiente para o anti-sionismo mais virulento e as acusações mais infundadas.

Reciprocamente, as associações “judeu-comunista”, “judeu-expropriador da propriedade privada”, “judeu-perverso sexual” e igualmente “judeu-assassino de Cristo”, cumpriram seu papel no anti-semitismo de cunho nazista e sobrevivem no anti-semitismo de direita (nem sempre professado apenas pelos néo-nazistas). Antes do nazismo, o mesmo conjunto de representações demonizadoras, com seu cortejo de pogroms, serviu igualmente para diminuir as tensões sociais resultantes da agonia dos regimes aristocráticos da Europa Oriental. No Oriente Médio, o ódio a Israel e ao judeu, absolutamente vinculados no imaginário veiculado pelo clero islâmico, exerce a mesma função política — preservar as instituições de uma sociedade semi-feudal, bem como a distribuição vigente de poder, justificados pela meta sagrada de exterminar os infiéis. Pode-se dizer que o anti-sionismo representa o anti-semitismo em sua versão esquerdista e, similarmente ao anti-semitismo de direita e muçulmano, constitui uma concepção conservadora particularmente reveladora em relação ao rumo retrógrado adotado pelos auto-denominados “progressistas”.

Os intelectuais que se reclamam da esquerda defendem seus privilégios, a saber, cargos políticos, posições na academia, postos sindicais, em suma, interesses materiais, com a mesma tenacidade que os empresários defendem seus lucros e seus mercados. Os editores, repórteres e colunistas da grande imprensa estão imersos nesse mundo de interesses e concepções ideológicas. Seria preciso uma coragem e uma honestidade consideráveis para ousar desafiar as regras não escritas que ditam a posição política considerada correta. A demonização de Israel é importante demais enquanto senha de pertença ao grupo para ser questionada. Atrever-se a manifestar independência de pensamento, tanto no meio acadêmico, como político, sindical e midiático, é o mesmo que escolher o exílio — com todas as conseqüências sociais e profissionais inerentes.

É muito mais fácil participar do grande coro demonizador e fechar os olhos para a ética.Não esperemos que os comentaristas internacionais se oponham ao linchamento de Israel. Muito pelo contrário — farão tudo para não perceber que Israel está recebendo o mesmo tratamento goebbeliano que a direita alemã dava aos judeus na década de 30 e aceitarão participar. Para eles, Massada, enquanto símbolo do direito à autonomia intelectual, representa sobretudo um isolamento perigosíssimo. A análise isenta do conflito constitui antes uma maçada, que deve ser evitada a todo e qualquer custo.

Franklin Goldgrub

Nenhum comentário: