Por José Maria e
Silva
Antes mesmo de pisar em solo
inglês para disputar as Olimpíadas de 2012, o Brasil já vinha de uma queda de
braço com o Reino Unido. Trata-se de uma disputa econômica para ver quem ocupa o
sexto lugar da economia mundial. A princípio, a vitória é do Brasil. Com um PIB
(Produto Interno Bruto) de 2,45 trilhões de dólares em 2011, o Brasil havia
ultrapassado o Reino Unido, tornando-se a sexta maior economia do mundo, atrás
apenas dos Estados Unidos, China, Japão, Alemanha e França. Todavia, com a
desvalorização do real frente ao dólar, ocorrida nos últimos meses, o PIB
brasileiro deve cair para o patamar de 2,34 trilhões de dólares, levando o Reino
Unido a recuperar a sexta posição, enquanto o Brasil voltará a ser a sétima
economia mundial, ainda assim, à frente da Itália, Rússia e Canadá.
Em outras palavras, o Brasil
não é mais o longínquo País de 1936, do qual o escritor Stefan Zweig (1881-1942)
se despediu, ao cabo de sua primeira visita, pensando: “Percebi que havia
lançado um olhar para o futuro do mundo”. E, antes desse elogio do escritor
austríaco, o Conde Afonso Celso, em 1900, enumerando as grandezas que o levavam
a ufanar-se do Brasil, indagava a respeito do País: “É verdade que a grandeza
não deriva da simples posse de dons valiosos, mas do seu sábio aproveitamento.
Por que, porém, deixaremos de pôr em ação os nossos prodigiosos recursos?”. Essa
pergunta ainda reboa nos ouvidos da nação, que, a despeito de estar entre as
sete maiores economias do mundo, ainda se vê como a pátria da esperança e não
das realizações.
O brasileiro nunca percebeu o
Brasil como obra sua e, sim, como dádiva de Deus. Por isso, o gigante continua
deitado em berço esplêndido, comodamente adaptado ao olhar estrangeiro, que
sempre viu o País como uma exuberante natureza morta, destituída de pessoas à
altura da história. Como confessa Stefan Zweig: “Imaginava que o Brasil fosse
uma república qualquer das da América do Sul, que não distinguimos bem umas das
outras, com clima quente, insalubre, com condições políticas de intranquilidade
e finanças arruinadas, mal administrada e só parcialmente civilizada nas cidades
marítimas, mas com bela paisagem e com muitas possibilidades não aproveitadas —
país, portanto, para emigrados ou colonos e, de modo nenhum, país do qual se
pudesse esperar estímulo para o espírito”.
A fúria
machadiana
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Um Machado de Assis branco;
assim a Caixa Econômica Federal o via num comercial:desinformação? |
E esse mal não é novo. Já
incomodava o “Escritor Nacional” (como diria
o personagem Donga Novais do novelário de Autran Dourado), a propósito de quem a
escritora Nélida Piñon cinzelou a máxima: “Se Machado de Assis existiu, então o
Brasil é possível”. Escrevendo semanalmente na “Gazeta de Notícias”, do Rio de
Janeiro, entre 24 de abril de 1892 e 11 de novembro de 1900, o criador do
alienista Simão Bacamarte dedicou uma de suas crônicas a repudiar o viciado
olhar estrangeiro que só via no Brasil a paisagem natural, desprezando
completamente o povo que habitava essas paragens, como se não fora digno de
constar nem mesmo no rodapé da história.
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Esse o Machado de Assis verdadeiro |
Em 20 de agosto de 1893, a
propósito de um telegrama de Sarah Bernhardt (1844-1923), em que a atriz
parisiense desmentia os conceitos a respeito do Brasil que um jornal argentino
lhe atribuíra, Machado de Assis (1839-1908) discorre sobre essa espécie de
síndrome do Brasil telúrico, sempre mais próximo da natureza do que da cultura.
Para desculpar-se com o Brasil, Sarah Bernhardt havia empregado a expressão “ce
pays féerique” (“este país feérico”), razão da crítica de Machado: “Uma das
minhas convicções (e tenho poucas) era esta: se algum dia Sarah escrever a nosso
respeito, não empregará a velha chapa de todos os viajantes que por aqui passam:
ce pays féerique. E tu, amiga minha, tu arrancas-me sem piedade esta ilusão do
meu outono”.
Machado de Assis é sarcástico:
“O meu sentimento nativista, ou como quer que lhe chamem, —patriotismo é mais
vasto, — sempre se doeu desta adoração da natureza. Raro falam de nós mesmos;
alguns mal, poucos bem. No que todos estão de acordo, é no pays feérique.
Pareceu-me sempre um modo de pisar o homem e as suas obras. Quando me louvam a
casaca, louvam-me antes a mim que ao alfaiate. Ao menos, é o sentimento com que
fico; a casaca é minha; se não a fiz, mandei fazê-la. Mas eu não fiz, nem mandei
fazer o céu e as montanhas, as matas e os rios. Já os achei
prontos”.
O escritor lembra, nesta
crônica, que há muitos anos havia ciceroneado um estrangeiro no Rio e que este,
numa noite em que falaram da cidade e sua história, mostrou desejo de conhecer
uma velha construção: “Citei-lhe várias; entre elas a igreja do Castelo e seus
altares. Ajustamos que no dia seguinte iria buscá-lo para subir o morro do
Castelo. Era uma bela manhã, não sei se de inverno ou primavera. Subimos; eu,
para dispor-lhe o espírito, ia-lhe pintando o tempo que por aquela mesma ladeira
passavam os padres jesuítas, a cidade pequena, os costumes toscos, a devoção
grande e sincera”.
Mas a decepção de sempre
aguardava Machado: “Chegamos ao alto, a igreja estava aberta e entramos. Sei que
não são ruínas de Atenas; mas cada um mostra o que possui. O viajante entrou,
deu uma volta, saiu e foi postar-se junto à muralha, fitando o mar, o céu e as
montanhas, e, ao cabo de cinco minutos: ‘Que natureza que vocês têm!’ (...) A
admiração do nosso hóspede excluía qualquer ideia da ação humana. Não me
perguntou pela fundação das fortalezas, nem pelos nomes dos navios que estavam
ancorados. Foi só a natureza”.
Enegrecimento à
força
Se Machado de Assis encarnasse
uma de suas criaturas, o defunto-autor Brás Cubas, e se fizesse cronista póstumo
deste Brasil da Copa e das Olimpíadas, haveria de notar que as coisas pioraram
ainda mais e que já não é apenas a geografia do País que se conforma em ser
cartão-postal — hoje, é a própria alma da nação que se entrega feito natureza
morta. Como no verso do poeta e crítico piauiense Mário Faustino (1930-1962) —
“o olhar recebe a forma e esquece a essência” —, o brasileiro é convocado a
encarnar em sua própria alma a aparência que o mundo formou dele: um ser feito
só de sentidos, em que o instinto é maior do que a razão.
É o que se percebe, por
exemplo, no clipe com a canção-tema das Olimpíadas, dirigido por Estevão
Ciavatta, da Pindorama Filmes, e lançado na semana passada pela Prefeitura do
Rio de Janeiro. O clipe reforça esse Brasil para inglês ver, expresso pela alma
carioca no que ela ter de pior — a absorção, em si mesma, do clima tórrido e
insalubre, palco da terrível febre amarela, no passado, e da dengue, no
presente, como se essas enfermidades do corpo plasmassem o próprio espírito da
gente trêfega, que, de modo bisonho e malemolente, desfila por esse vídeo que
vai mostrar ao mundo a imagem do palco oficial das Olimpíadas de
2016.
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André
Rebouças: engenheiro, advogado,inventor, deputado e conselheiro do imperador Pedro II e esquecido até dos movimentos negros |
Composta por Arlindo Cruz,
Rogê e Arlindo Neto e produzida por Alexandre Kassin, a música-tema “Os Grandes
Deuses do Olimpo Visitam o Rio de Janeiro” é interpretada por Diogo Nogueira,
Mart’nália, Mr. Catra, Thalma de Freitas, Zeca Pagodinho, Ed Motta e pelo
próprio Arlindo Cruz. Além dos intérpretes, ela reúne vários artistas, como
Buchecha, Fernanda Abreu, Fundo de Quintal, Jorge Aragão, Pedro Luís, Roberta
Sá, Ronaldo Bastos, Sandra de Sá, Toni Garrido, Zélia Duncan e as Velhas
Guardas do Império Serrano e da Vila Isabel. No clipe, aparece até mesmo a
escritora Nélida Piñon, fazendo o papel da deusa Atena, em meio a outros
artistas, como Fernanda Montenegro e Rodrigo Santoro, que também encarnam
personagens mitológicas. Mas a música nada tem a ver com o corpo atlético de
Apolo. Ela exalta o corpo relaxado de Baco: “Ficaram na roda de samba até
clarear / ficaram até de perna bamba de tanto sambar”.
Os deuses do Olimpo são
praticamente os únicos brancos do clipe. A inclusão do negro no imaginário
visual do país está sendo feita à custa da exclusão do branco — que, no entanto,
representa 47,7% do total de brasileiros, segundo dados do IBGE. Os negros
propriamente ditos são apenas 7,6%. Mas como o governo petista — cavalo de santo
do racismo de laboratório produzido pela academia — está empenhado em fomentar
uma guerra racial no país, os negros passaram a ser chamados oficialmente de
“pretos” (termo que até outro dia era amaldiçoado pela ditadura do politicamente
correto) e, somados aos 43,1% de pardos — que foram enegrecidos à força — formam
um contingente de 50,7% de negros estatísticos. Obviamente, essa população negra
só existe na mente pueril das autoridades, teleguiada pela insanidade moral dos
intelectuais universitários.
Eugenia às
avessas
O clipe das Olimpíadas de 2016
reduz os brasileiros ao perfil simiesco de exportação, em que as gentes dos
trópicos são sempre apresentadas como não tendo cérebro, feitas exclusivamente
para dançar samba e jogar futebol. E, como sempre, o negro é convocado a fazer
esse papel abjeto. Seguindo a política racialista iniciada pelo governo Fernando
Henrique e transformada em eugenia às avessas pelo governo Lula, o clipe faz do
Brasil um país exclusivamente de negros. E o que é mais grave: uma vez que o
País é uma nação de negros, a Prefeitura do Rio entendeu que é também uma nação
de bola, pandeiro e cachaça. Só faltou explorar a indefectível imagem das
mulatas seminuas esfregando as calipígias formas no rosto louro de algum
estrangeiro.
Nos últimos anos,
especialmente depois da ascensão de Lula ao poder, o símbolo por excelência do
Brasil passou a ser o negrinho de periferia jogando bola nas ruas, utilizado
exaustivamente em comerciais de TV. Essa imagem, confesso, me dá asco
duplamente: primeiro, por vilipendiar o negro, circunscrito a corpo e sentido,
sem cérebro; segundo, por conseguir esconder o verdadeiro e óbvio racismo que
está por trás dessa redução do negro a uma espécie de fenômeno bruto da
natureza, incapaz de se relacionar com elementos nobres da cultura, como um
livro, um violino, uma aquarela. É claro que jogar bola e dançar capoeira não
avilta ninguém, mas fazer dessas atividades a expressão por excelência da
cultura negra é, sem dúvida, alijar o negro do universo intelectual que produziu
o teatro de Shakespeare, as sinfonias de Beethoven, a física de
Einstein.
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Cruz e Souza, escritor nascido
na loura Florianópolis: outro esquecido dos Movimentos Negros. |
Mas, no fundo, é justamente
isso o que faz o Ministério da Educação no documento “Orientações e Ações para
a Educação das Relações Étnico-Raciais”, publicado em 2006, na gestão do
ex-ministro Fernando Haddad, atual candidato a prefeito de São Paulo. Citando o
jornalista e sociólogo Muniz Sodré, professor titular da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, o documento do MEC enfatiza textualmente: “Na cultura negra o
corpo é fundamental”. Só na cultura negra? — cabe a pergunta. Um povo que não
considerasse o corpo como fundamental estaria condenado ao suicídio coletivo.
Toda cultura zela pelo corpo com sua melhor tecnologia, sejam as raízes
cultivadas pela tradição, seja o bisturi adestrado na ciência. Até a cultura
judaico-cristã, acusada de vilipendiar o corpo com jejuns e martírios, foi uma
precursora da profilaxia, como se vê nas leis de Moisés.
Mas, obviamente, o MEC não
está falando da dimensão simplesmente física e médica do corpo. O documento
parte de uma concepção demencial do negro, como se ele não fosse um brasileiro
como os outros e tivesse acabado de aportar no Brasil do século XXI proveniente
da Angola do século XVI. É o que fica claro no restante do texto do MEC: “Na
cultura negra o corpo é fundamental. Sobre o corpo se assenta toda uma rede de
sentidos e significados. Esse não é apartado do todo, pertence ao cosmos, faz
parte do ecossistema: o corpo integra-se ao simbolismo coletivo na forma de
gestos, posturas, direções do olhar, mas também de signos e inflexões
microcorporais, que apontam para outras formas perceptivas”.
Negro como
natureza
Não há limite para a demência
do MEC nas orientações que fornece à escola sobre o modo de tratar a cultura
negra. Depois de afirmar que “o corpo é a representação concreta do território
em movimento” (uma frase digna de hospício), o documento do MEC sustenta: “Ao
contrário de uma percepção de mundo na qual a alma é onde reside a força e a
possibilidade de continuidade, para uma cultura negra a força está no corpo, não
existe essa ideia de uma força interior alavancada pela ação da fé. Toda
possibilidade encontra-se no corpo potente que procura suas mediações nas
relações que constitui no cosmos, daí o compartilhamento como práxis ser uma
questão fundamental para se entender a dinâmica de uma cultura negra no
Ocidente”.
Releiam esta absurda frase:
“Para uma cultura negra a força está no corpo, não existe essa ideia de uma
força interior alavancada pela ação da fé”. Esse documento do MEC fere
frontalmente a Constituição ao querer impedir os negros brasileiros —
majoritariamente cristãos — de exercer livremente sua crença. E mais do que
ofender a fé do negro, o MEC — neste texto vil e moralmente criminoso —
vilipendia a própria humanidade do negro ao negar-lhe a alma, o espírito, a
razão, deixando-lhe tão-somente o corpo, como faziam os traficantes de escravos.
Estarrece saber que esse documento oficial do MEC foi escrito por cinco mulheres
— vítimas potenciais de toda cultura centrada na força física. A mulher só tem
lugar na civilização, onde impera o cérebro; onde manda o corpo, ela vira
repasto do macho, como ocorre entre a maioria dos animais.
Mas o MEC não se contém em
suas orientações sobre a cultura negra na escola e chega a reduzir o negro a um
mero elemento da natureza. Eis o que diz o documento: “Todos trocam algo entre
si, homens, mulheres, árvores, pedras, conchas. Sem a partilha, não há
existência possível. Faz-se necessário pensar que a cultura negra não está
marcada por uma necessidade de conversão. Existe um sentido de agregação que não
gira em torno de uma verdade única”.
Após esse ataque nada sutil ao
cristianismo, o MEC regurgita outras bobagens sobre as “comunidades de matriz
africana” (isso existe no Brasil?) para concluir: “Uma visão de mundo negra
implica a possibilidade de abertura para o mundo, para a vida e principalmente
para o outro. Por exemplo, em uma ‘roda de capoeira’, todos que compartilham os
códigos são aceitos, desde que se coloquem como parceiros(as) e respeitem a
hierarquia”.
Pensamento mágico do
MEC
Para essa abominável pedagogia
do MEC, herdeira da nefasta autoajuda marxista de Paulo Freire, o negro não é um
brasileiro como os demais: cristão, falante do português, eivado dos mesmos
sonhos da gente comum, que quer estudar, trabalhar, constituir família, criar
filhos, vencer na vida. Para os lunáticos do MEC, o negro é um ser à parte,
prisioneiro da materialidade do seu próprio corpo, que se agrega à natureza como
um elemento indistinto dela. O MEC está tratando o negro como sempre tratou o
índio: arranca-lhe a alma humana, legada pela civilização, e o atira na paisagem
de uma cultura telúrica, que, em vez de ser sujeito da natureza, é tão objeto
dela quanto os bichos, as pedras, as plantas. Se isso não for racismo, não sei o
que seja.
Para completar, o documento do
MEC chega a flertar com o pensamento mágico, que vê na cultura do negro
brasileiro uma circularidade ancestral. Eis o que diz o texto, sentenciosamente:
“E aqui vale uma pequena abordagem relativa à circularidade. Para a cultura
negra (no singular e no plural), o círculo, a roda, a circularidade é
fundamento, a exemplo das rodas de capoeira, de samba e de outras manifestações
culturais afro-brasileiras. Em roda, pressupõe-se que os saberes circulam, que a
hierarquia transita e que a visibilidade não se cristaliza. O fluxo, o movimento
é invocado, e assim saberes compartilhados podem constituir novos sentidos e
significados, e pertencem a todos e todas elas”.
Alguém consegue imaginar
cientistas e matemáticos movimentando-se em rodas de capoeira para formular
teoremas, descobrir o antibiótico, inventar o avião? Pensar é concentrar-se.
Esse negro gregário, plástico, permanentemente aberto ao outro que o MEC inventa
não é capaz de criar civilização — é objeto e não sujeito de sua própria
cultura.
E aí voltamos ao clipe das
Olimpíadas de 2016, da Prefeitura do Rio, que segue integralmente as diretrizes
do MEC e das universidades relativas à cultura negra. O clipe mostra um Dionísio
caindo de bêbado nas ruas (numa infeliz referência a Baco, que é o antônimo de
Olimpíadas) e ainda um trabalhador negro, de calção e sem camisa, carregando uma
geladeira ao mesmo tempo em que dança. É essa a imagem que o Brasil vende ao
mundo: a de um povo tão esculhambado que não leva a sério nem o trabalho. E,
como sempre, cabe ao negro encarnar esse papel vergonhoso.
Como se não bastasse tudo
isso, entre os negros chamados a representar o Brasil monocromático do samba
está um tal Mr. Catra. Fui pesquisar quem é o sujeito. Ele se diz convertido ao
judaísmo apenas para poder praticar a poligamia de Fernandinho Beira-Mar, com
várias mulheres e mais de 20 filhos, dos quais ele nem sabe o nome. Suas letras
— facilmente encontradas na Internet — colocam as mulheres muito abaixo das
cadelas de rua. Impossível citá-las aqui como exemplo. Seria como abrir o
esgoto. Não creio que alguma corrente do judaísmo aprove isso. Mas a Prefeitura
do Rio, o MEC e os intelectuais universitários aprovam. Tanto que Mr. Catra é um
queridinho da mídia.
Feitores de almas
É lamentável que se dê espaço
tão nobre para esse tipo de negro, como se ele fosse representativo da cultura
afro-brasileira. Os negros legaram ao Brasil, entre muitas outras coisas, o
maior poeta simbolista do país, que é também o maior escritor de um dos Estados
mais brancos — o poeta Cruz e Sousa (1861-1898), de Santa Catarina. Também
legaram um dos maiores músicos eruditos da América Latina, o padre José Maurício
Nunes Garcia (1767-1830), em cuja obra se inspira o próprio Hino Nacional
Brasileiro. E seria preciso escrever um verdadeiro tratado de história e
sociologia do conhecimento para enumerar todos os mulatos — começando por
Machado de Assis, Lima Barreto (1881-1922) e o engenheiro André Rebouças
(1838-1898) — que, em plena escravidão, legaram obras fundamentais ao país em
todas as áreas.
Mas tanto no clipe das
Olímpiadas, quanto nas diretrizes do MEC e nas teses universitárias, não há
lugar para esse tipo de negro altivo, cerebral, não gregário. Para racialistas
do MEC e da academia, os negros foram feitos para dançar e sorrir. Não sentem
tristeza, não sabem o que é reflexão, não se permitem ser introspectivos. E
andam sempre em bando, como se não fossem indivíduos, mas reses de algum
rebanho. Sua música jamais seria um blues. É sempre um samba, falando ao corpo,
jamais à alma. Aliás, todas as manifestações culturais tidas como autenticamente
negras pelas universidades — como a capoeira, o hip hop, a roda de samba, o funk
— costumam ter essas duas características: são gregárias e dançantes, condenando
o negro a viver em bando, superficialmente.
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Padre José Maurício Nunes
Garcia, maior compositor das Américas em seu tempo. |
Ao tratar o negro dessa forma,
a universidade brasileira age da mesma forma que os brutais traficantes de
escravos. Foram eles que criaram — na base do açoite — esse negro dançante e
sorridente. No livro “A Vida dos Escravos do Rio de Janeiro (1808-1850)”, a
historiadora norte-americana Mary Karasch descreve a venda de escravos no
Valongo (o grande mercado de negros da corte) e conta que os comerciantes
negreiros, a fim de convencer os compradores de que suas peças não estavam com
“preguiça” ou depressão, ministravam-lhes estimulantes como pimenta, gengibre e
tabaco. “Um segundo remédio para a nostalgia era ‘estimular’ os africanos a
cantar e dançar a música de suas terras natais”, acrescenta a
historiadora.
“Assim, o som de tambores e
palmas e das canções africanas enquanto os escravos dançavam contribuía para a
atmosfera do Valongo. Se alguns escravos se recusassem a tomar parte, um feitor
forçava-os a dançar, porque acreditavam que a falta de movimento estimularia a
nostalgia e assim diminuiria seus lucros. Além disso, exigia-se com frequência
que os africanos dançassem de ‘maneira alegre’ durante seu exame físico, a fim
de convencer os compradores de sua saúde excelente. Se expressassem seus
verdadeiros sentimentos ou apatia e depressão eram açoitados”, conta a
historiadora. Felizmente, o negro se libertou dos feitores de corpos; mas
precisa se libertar dos feitores de almas — que o espreitam com a escravidão
mental.
Fonte: Jornal Opção, Goiânia,
19 de agosto de 2012.
Marcadores: Escola sem Partido, Jornal Opção-Goiania, JOSÉ MARIA E SILVA, MEC,
Negros, Olimpiadas 2016
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