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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

02/2012 - Direto ao Ponto

Por que Gilberto Carvalho ficou tão feliz com o desempenho da viúva militante, que reservou a Sombra a compaixão e a ternura negadas ao marido assassinado?

Às 23 horas de 17 de janeiro de 2002, depois de assistirem a um filme na TV, Ivone Santana e Celso Daniel foram dormir juntos pela última vez. Na noite seguinte, a socióloga de 38 anos soube que o homem a quem estava ligada afetivamente desde 1996 fora sequestrado ao voltar de um restaurante em São Paulo na Pajero blindada dirigida por Sérgio Gomes da Silva, o Sombra, ex-segurança, ex-assessor e empresário. Ela jura que passou o dia 19 à espera do pedido de resgate. Em 20 de fevereiro, o corpo da vítima foi encontrado numa estrada de terra. Além de 11 perfurações a bala, a autópsia encontrou numerosas evidências de que, antes de executá-lo, os assassinos haviam submetido Celso Daniel a torturas selvagens.

Surpreendida por tamanha tragédia, uma viúva de Nelson Rodrigues atravessaria o velório assombrando os presentes com saltos ornamentais sobre o caixão, berreiros de acordar qualquer defunto, imprecações tremendas contra culpados ou inocentes ─ e colecionaria desmaios sucessivos até a missa de 30° dia. Mesmo a mais contida das mulheres não demoraria menos de um mês para recordar o que ocorrera sem que a emoção interrompesse o relato de cinco em cinco minutos. O caso Celso Daniel precipitou a aparição de outra maravilha da fauna do PT: a viúva militante. Essa mutação não sabe o que é luto. Discorre sobre uma perda recentíssima com a placidez de quem narra um torneio de golfe. E precisa de apenas uma semana para preencher uma página de jornal com palavrórios abjetos na forma e suspeitíssimos no conteúdo.

Ela chorou duas vezes, garante o repórter que assina a entrevista publicada pela Folha de S. Paulo em 28 de janeiro de 2002. Pode ter sido algum cisco no olho, sugerem as respostas. O crime poderia ter tido motivações políticas?, começa a conversa. “O Celso não possuía inimigos políticos que pudessem chegar ao ponto de sequestrá-lo e matá-lo”, encerra o assunto a depoente sem dúvidas. “Foi um crime urbano”. Nessa hipótese, por que Sombra foi poupado pelos bandidos? “O Sérgio é moreno”, ensina, deixando claro que prefere o prenome ao apelido revelador. E decola rumo à estratosfera: “Nosso racismo cordial deve ter falado mais alto, e os caras acharam melhor pegar o Celso”. Tradução: o erro do prefeito foi ter nascido branco.

Por que não pediram resgate? “Os caras foram atrás porque acharam que era um empresário com grana. Mas aí descobriram que pegaram o sujeito errado. Com todo aquele cerco, aquele barulho da imprensa, os caras devem ter se apavorado e achado que não podiam ficar com ele, que tinham de se livrar dele”. Não viu nada de estranho no comportamento de Sombra, nenhuma das suspeitas levantadas lhe parece pertinente? “Delírio puro”, irrita-se Ivone. “Celso saiu para jantar com um amigo, que é da família. Não foi o prefeito que saiu para jantar com um empresário. Será que as pessoas não entendem a diferença? Conheço Sérgio desde 1988. É um amigo”. O entrevistador lembra que peritos mobilizados pelo fabricante da Pajero desmontaram a fantasia dos defeitos mecânicos. “A resposta está na ponta da língua: “Se o carro é da Mitsubishi e chamam um sujeito da Mitsubishi para dar pareceres… Tenha dó, não é?”

A doçura do tratamento dispensado à figura que pode ter sido o mandante do crime contrasta com a ausência de alusões carinhosas ao assassinado. Como Miriam Belchior, que viveu 10 anos com Celso Daniel, Ivone Santana negou-lhe até mesmo palavras compassivas. O dramático fim do prefeito que ocuparia na campanha de Lula o posto que acabou confiado a Antonio Palocci não foi chorado pelas companheiras que teve. Somadas, as lágrimas da dupla de viúvas não bastam para encher três tampinhas de garrafa de cerveja. Se não tivesse batido em retirada, Gilberto Carvalho teria de encontrar explicações, na segunda metade da entrevista, para o espetáculo da frieza ─ e seria confrontado com as informações e perguntas resumidas em mais oito tópicos:

1. Numa gravação, uma voz não identificada cumprimenta Ivone Santana pela entrevista concedida à Folha e a estimula a aceitar o convite para brilhar no programa de Hebe Camargo. Em outra, Gilberto Carvalho aplaude a performance de Ivone e diz que a entrevista “pode mudar o rumo das investigações”. Que rumo deveria tomar o inquérito? Numa das fitas que desapareceram, Luiz Eduardo Greenhalgh, em tom zombeteiro, elogia a competência de Miriam Belchir no papel de viúva. Se havia papéis, houve um script. Qual era o desfecho previsto?

2. Em nenhuma gravação as viúvas ouvem palavras de consolo ou solidariedade. Não ficaram abaladas com a morte de Celso Daniel?

3. Por que ninguém se mostra indignado com o assassinato? Por que ninguém exige a identificação e a condenação dos responsáveis? Por que ninguém lamenta a perda de Celso Daniel?

4. Gilberto Carvalho assumiu a secretaria de Comunicação da prefeitura de Santo André em 1997 e era secretário de Governo em janeiro de 2001. Nunca ouviu comentários sobre a existência de um esquema de arrecadação de dinheiro sujo para financiar campanhas do PT?

5. Em março de 2003, na sua casa em São Bernardo, Lula ouviu de Mara Gabrilli, filha de um empresário do setor de transportes, um relato circunstanciado sobre as pressõers movidas contra a Expresso Guarará por um grupo de que faziam parte o secretário de Serviços Municipais, Klinger de Oliveira, o empresário Ronan Maria Pinto, hoje dono do Diário do Grande ABC, e por Sombra. No dia do encontro entre Lula e Mara, Gilberto Carvalho já era secretário-particular de Lula. O que o chefe lhe contou depois do encontro? Acreditou no que ouvira? Tentou confirmar as denúncias?

6. Em 2005, Rosângela Gabrilli, irmã de Mara, reiterou as acusações na CPI dos Bingos e provou, com documentos, que a empresa de seu pai foi obrigada meses a fio a entregar à quadrilha R$ 40 mil mensais, em dinheiro vivo, repassados ao caixa 2 do PT. Por que Gilberto Carvalho jamais se manifestou sobre o depoimento de Rosângela?

7. Em 2010, Marcos Bispo dos Santos, acusado pelo Ministério Público de integrar o grupo de oito executores, foi condenado a 18 anos de prisão. Durante o julgamento, o promotor Francisco Cembranelli defendeu a tese do crime político. Gilberto Carvalho achou incorreta a argumentação do promotor? Achou injusta a decisão do tribunal do júri?

8. Sérgio Gomes da Silva, que ficou preso oito meses, será julgado ainda neste ano. Gilberto Carvalho está disposto a depor como testemunha de defesa?

É improvável que se arrisque a tanto. Desde a descoberta das gravações, o sacristão de cordão carnavalesco guarda distância também dos antigos parceiros de Santo André. Acampado no Planalto, terá de reaprender orações esquecidas e rezar para que Sombra, caso se sinta em perigo, não resolva afundar atirando. Se optar pelo abraço do afogado, Sombra confirmará que, na segunda metade dos anos 90, empresários da área de transportes e pelo menos um secretário municipal, todos vinculados ao PT, forjaram o embrião do esquema do mensalão. Recorrendo a extorsões, a quadrilha infiltrada na administração municipal ajudou a patrocinar a gastança eleitoral do partido. Ao saber que parte das boladas começara a ser desviada para os contas bancárias dos delinquentes, Celso Daniel resolveu impedir que os ladrões lesassem o PT. Foi punido com a morte.

Na entrevista que não houve, ficaria claro que Gilberto Carvalho e seus comparsas conspiraram para impedir a descoberta da roubalheira. Decididos a manter o partido vivo, promoveram a segunda morte de Celso Daniel. Tentam assassinar a verdade desde 2002. Não conseguirão.

Augusto Nunes

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