Passei as últimas semanas lendo o livro FAUSTO, de Goethe, e vasta literatura em torno do tema. Essas leituras são destinadas a fundamentar o curso que vou dar sobre o livro neste semestre. Não é uma obra simples, porque está carregada de simbolismos cujo sentido deixou de ser percepção corrente há muito tempo, provavelmente desde que foi escrito. É, por esse aspecto, uma obra muito difícil para os leitores de hoje. No centro do poema está a questão do Mal, da sua personificação. A sociedade laica e atéia que se tornou majoritária em nosso meio sequer dá-se conta da dimensão prática dessa discussão, que só teve algum interesse no período imediatamente posterior à segunda guerra mundial e, ainda assim, sob a perspectiva atéia. Um exemplo conspícuo é a obra de Hanna Arendt, tentando entender o que se abateu sobre a Europa e, em especial, sobre o povo judeu. Creio que ela fracassou por tentar responder à questão escapando ao desafio teológico colocado pelos eventos.
[Hanna Arendt deu grande impulso à linha teórica que reforça a tese dos direitos humanos como fundamento da filosofia política e jurídica enquanto instrumento para combater o totalitarismo, sem perceber que esta tese já havia sido empolgada pelos cultuadores do mesmo totalitarismo então vencido. Vemos agora no Brasil o exemplo de como essa linha teórica desaguou na justificação da dissolução dos valores ocidentais, fundamentando todas as mazelas que precederam a eclosão do totalitarismo. Como herdeira dos valores iluministas e ateus, Arendt deixou-se cair na armadilha e certamente ficaria espantada sobre o que se fala em seu nome para justificar as novas gerações de “direitos”, que na prática levam ao oposto de uma sociedade juridicamente organizada de forma sã, abrindo o flanco para que novos totalitarismos emirjam.]
Definitivamente, o problema do Mal se manifesta sobretudo na dimensão política, por causa da escala cataclísmica. Ele, todavia, é também uma experiência pessoal e ouso meditar que a vida humana, ao fim e ao cabo, é uma coleção de experimentos e confrontos com o Mal, mesmo que a pessoa individualmente não tenha consciência do que se passa consigo mesma. Os filósofos e cientistas políticos que viveram no pós-guerra não esconderam seu pasmo e seu terror diante dos acontecimentos do totalitarismo que se abateu sobre o mundo na primeira metade do século XX. O Estado tornou-se o grande e mais poderoso instrumento pelo qual as personalidades demoníacas puderam praticar as maldades no limite do paroxismo. Creio ser impossível discutir seriamente filosofia política sem enfrentar a questão teórica do Mal. Daí a atualidade perene da obra de Goethe, que colocou o problema de forma integral no seu poema. O objeto deste comentário, todavia, não é o FAUSTO, mas dois textos papais acerca do tema. Dois papas e duas visões do Mal, que, sob uma ótica estrita, são visões opostas, mas que se completam em algum grau.
O primeiro texto é de autoria de João Paulo II (MEMÓRIA E IDENTIDADE, Editora Objetiva, 2005), sendo o que mais nos interessa os seus dez primeiros capítulos. O essencial do livro está no relato da experiência do papa na sua Polônia natal e o confronto que ele pessoalmente fez com as duas formas de totalitarismo mais letais que a Europa viveu: o nazismo e comunismo. João Paulo II adotou a linha de pensamento que, de certa forma, é a oficial e preponderante na Igreja Católica, que vê o Mal como mera privação do Bem, na linha inaugurada por Santo Agostinho. É uma abordagem intelectual do Mal e creio ser ela insuficiente e inadequada para dar conta da sua realidade nefanda.
O segundo texto é um discurso do Papa Paulo VI proferido em 1971 e que pode ser acessado na página do professor Felipe Aquino. Nesse discurso famoso o Mal assume a forma personificada que está no poema de Goethe, deixando de ser uma abstração filosófica para ser uma figura atuante. Suas primeiras palavras foram cortantes: “Atualmente, quais são as maiores necessidades da Igreja? Não deveis considerar a nossa resposta simplista, ou até supersticiosa e irreal: uma das maiores necessidades é a defesa daquele mal, a que chamamos Demônio”. E, mais à frente: “O mal já não é apenas uma deficiência, mas uma eficiência, um ser vivo, espiritual, pervertido e perversor”. Creio ser esta a mesma percepção de Goethe e que se encontra amplamente amparada nos textos bíblicos, desde o Gênesis até às Escrituras do Novo Testamento. Basta notar que uma das qualidades de Jesus em suas ações era o poder com que expulsava os demônios, tendo sido ele próprio tentado por Satã.
A visão intelectualista de Santo Agostinho e de João Paulo II deixa escapar o fato essencial de que o Mal é um sujeito que opera, tem vontade própria e capacidade de desencaminhar os homens individualmente, mas ele tem sobretudo a capacidade de influir sobre os homens de poder e de conhecimento. Ele sempre age por meio de homens e mulheres que se dispõem a fazer o pacto mefistofélico, como bem descrito na obra de Goethe. O enorme poder que os Estados atuais são detentores acaba por se tornar armas mortíferas contra a humanidade. Nesse sentido, os perigos dos tempos de hoje são maiores do que aqueles que antecederam as duas grandes guerras. Entender o Mal passou a ser elemento essencial para compreender como o mundo hoje está se movendo.
É no Livro de Jó que Goethe buscará inspiração para seu poema. Jó é um personagem típico do Antigo Testamento, homem temente a Deus e capaz de resistir de forma santificada às investidas do Demônio. Sua vitória sobre o Mal é completa por força dessa santidade. Em Goethe, todavia, vemos um tipo diferente de homem: o moderno intelectual que se cansou da própria ciência e está mergulhado no tédio da razão. É a criatura que desdenha do criador e que busca no trinômio sexo, poder e dinheiro os meios para escapar de sua infelicidade de ser criado. Diferentemente de Jó, Fausto se entrega voluntariamente ao Demônio, pratica toda sorte de maldades e morre para, ao final, ser resgatado, ainda assim, do fogo dos infernos. Um final cristão.
Os preferidos de Deus no Antigo Testamente eram grandes homens santos, capazes de resistir ao Mal, como Jó, José e Daniel. Mas nem sempre. Devemos nos lembrar de Davi, aquele que praticou iniqüidades, mas manteve-se como um preferido de Deus. O mesmo pode ser dito de seu filho Salomão.
João Paulo II lembrou no seu magnífico texto que o limite imposto ao Mal é a Redenção, exemplificada na própria encarnação do Deus Vivo. Mas essa é uma conclusão ex post facto e está mais vinculada à trajetória do indivíduo isolado. Sua finalidade é escatológica, não serve para a ação prática cotidiana dos viventes. Outra questão é como o Estado se torna o instrumento para se fazer no flagelo e no verdugo das massas, experiência não conhecida antes do século XX. Voltamos então ao problema da política e do Estado como interfaces e instrumentos da ação do Mal. Se os homens podem fazer alguma coisa para deter da eficácia do Mal em larga escala é por meio da política, agindo organizadamente sobre os centros de poder. Penso ser impossível dissociar a discussão teológica da práxis em sociedade. Mas como discutir o assunto quando ninguém nem mais acredita em Deus? Quem haverá de acreditar na ação do Demônio? Essa será talvez a maior vitória do Negador e o desamparo absoluto das gerações atuais diante do Nefando.
Um comentário:
O coração do ser humano está vazio.
Falta Deus e, por conseguinte, todos os sentimentos e valores que nos proporcionam paz de espírito e a verdadeira felicidade.
Esse é o único motivo que talvez possa explicar a indiferença das pessoas aos piores crimes que acontecem diante dos nossos olhos por alguém que idolatram, por isso tanto ódio e tanta violência.
O mal consegue espaço nesses corações vazios porque é atuante e determinado, enquanto aqueles que poderiam combatê-lo fizeram a opção pelo comodismo ou se renderam às tentações materiais.
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