Pois é. Lá vou eu dizer o que todos os coleguinhas sabem, pouco importa o lugar em que estejam no espectro ideológico. Uma minoria dirá o que tem de ser dito. A maioria calará diante da “boa causa” e da identificação com as vítimas, ignorando que, de fato, a “boa causa”, nesse e em qualquer caso, desde que estejamos numa democracia, é o triunfo do estado de direito.
Ao arrepio da Lei da Anistia; ao arrepio de votação do Supremo, que rejeitou a revogação dessa lei numa Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, movida pela OAB; ao arrepio do fato de que a própria lei que aprovou a Assembléia Nacional Constituinte, como já lembraram Gilmar Mendes e Eros Grau, trazia a anistia como pressuposto, um grupo de procuradores da Repúbica decidiu fazer justiça com, digamos, as próprias leis — que não são, então, aquelas vigentes no país, referendadas pela instância máxima do Judiciário. Leiam o que informa Iara Lemos no Portal G1. Volto em seguida com questões que me parecem importantes. Trata-se de saber se vamos construir o futuro ou ficar prisioneiros do passado.
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O Ministério Público Federal (MPF) anunciou nesta terça-feira (13), que irá protocolar uma ação contra o coronel da reserva Sebastião Curió por crimes de sequestro qualificado contra cinco militantes que atuaram durante a guerrilha do Araguaia, movimento armado contra a ditadura militar organizado pelo PC do B e reprimido pelo Exército, entre 1972 e 1975, no sul do Pará. A denúncia, assinada por sete procuradores da República, será encaminhada nesta quarta-feira (14) à Justiça Federal de Marabá, no Pará. Será a primeira ação penal do Ministério Público Federal por crimes cometidos durante a Guerrilha do Araguaia. Segundo os procuradores, se condenado, Curió poderá pegar de dois a 40 anos de prisão.
(…)
De acordo com os procuradores, a denúncia foi baseada em um procedimento investigatório criminal, aberto em 2009 pela Procuradoria da República de Marabá. Desde então, os procuradores reuniram documentos e relatos das famílias das vítimas. A denúncia dos procuradores ocorre um ano depois de a Corte Interamericana de Direitos Humanos ter condenado o Brasil a fazer “a investigação dos fatos do presente caso [guerrilha do Araguaia] a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivas sanções”.
Segundo o Ministério Público, Curió será denunciado pelo sequestro de Maria Célia Corrêa (Rosainha), Hélio Luiz Navarro Magalhões (Edinho), Daniel Ribeiro Callado (Doca), Antônio de Pádua Costa (Piauí) e Telma Regina Cordeira Corrêa (Lia). De acordo com os procuradores, eles foram sequestrados entre janeiro e setembro de 1974. O procurador Sérgio Gardenghi Suiama afirmou que a Lei da Anistia não beneficia crimes como os que teriam sido cometidos pelo militar. “O crime de sequestro continua ocorrendo. Ele não se encerrou, uma vez que o paradeiro das vítimas não foi localizado. A ação do MPD não contraria a lei. A Lei de Anistia não beneficia neste caso o coronel Curió´”, afirmou.
Os sete procuradores que assinam a ação - Tiago Modesto Rabelo, André Casagrande Raupp, Ubiratan Cazetta, Felício Pontes Júnior, Ivan Cláudio Marx, Andrey Borges de Mendonça e Sérgio Gardenghi Suiama - integram o grupo de trabalho “Justiça de Transição”, que investiga crimes cometidos durante a ditadura militar. Desde segunda e até esta quarta, eles participam de um seminário em um hotel em Brasília, com a presença de procuradores de vários estados.
(…)
Voltei
Fica até difícil saber por onde começar. Mas vamos ordenar as coisas.
1: A Lei da Anistia é claríssima. Todos estão anistiados e de todos os lados, por crime políticos “e conexos”. Sem exceção. Logo, a afirmação de que existem crimes não abrigados na lei é falsa.
2: É preciso não confundir “anistia” com “absolvição”. Ninguém está sendo absolvido de nada. A anistia quer dizer “perdão político”, “esquecimento”, para que o país possa avançar.
3: As ações dessa natureza, essas e outras que virão, são escandalosamente ilegais.
4: Os procuradores se aproveitam do fato de que figuras como Curió — e eventuais torturadores — não despertam a simpatia de quase ninguém e são identificadas, nessa fábula, como “mal”; em contraste com o outro lado, onde estaria “o bem”. Logo, quase ninguém aparece para defendê-las.
5: Não se trata mesmo de defendê-las porque o ponto é outro: saber se o país optará ou não pelo cumprimento da lei.
6: É possível que uma ação como essa seja extinta em instâncias inferiores. Se não for, chegará ao Supremo, cujo entendimento está mais do que estabelecido.
7: Os senhores procuradores, pois, estão desperdiçando recursos públicos com uma ação inútil, que só busca fazer embaixadinha para a platéia de esquerda.
8: Se o objetivo é colaborar com a tal Comissão da Verdade, ou trabalhar em parceria com ela, estão sendo contraproducentes e chamando a atenção para o potencial risco de revanche.
9: A Corte Interamericana de Direitos Humanos não tem poder de impor coisa nenhuma ao Judiciário brasileiro nem é sua corte revisora.
Sempre que esse tema é debatido, alguém se lembra de citar o comportamento, nesse particular, da Argentina, que decidiu punir os criminosos da ditadura etc e tal. Em primeiro lugar, a comparação das duas realidades é um despropósito absoluto. Com uma população que corresponde a um quinto da nossa, estimam-se em 30 mil pessoas os mortos e desaparecidos durante a ditadura naquele país; no Brasil, com todos os exageros a favor da causa, são 424. Não! Não estou dizendo que é pouca gente. Só estou dizendo que as comparações são descabidas.
A ditadura argentina foi derrubada; o fim do regime militar brasileiro foi longamente negociado. Os pactos históricos produzem frutos, que empurram os países para um lado ou para outro. A Espanha juntou todas as forças políticas em favor de uma transição pacífica da ditadura franquista para a democracia, de que o “Pacto de Moncloa” (1977) é um símbolo. O midiático juiz Baltasar Garzón tentou fazer a história recuar quase 40 anos, mas a moderna sociedade espanhola rejeitou suas propostas. A África do Sul ficou entre punir todos os remanescentes do regime do apartheid e a pacificação. Escolheu o segundo caminho.
Num mundo em que se tenta censurar uma obra do século 13, a ponderação é matéria em falta. Mas cumpre aos que ainda não perderam o juízo fazer uma convocação à razão.
Um filme
Assistam ao brilhante “O Segredo dos Teus Olhos”, de Juan José Campanella. O filme é subestimado ou costuma ter seu sentido moral invertido em algumas críticas que li. Não poderia haver melhor retrato da Argentina moderna. Vejam lá. Um homem passa uma vida sendo refém daquele que foi algoz de sua mulher, deixando, ele próprio, de viver. A Argentina kirchnerista, com a sua tara por encruar o passado — Cristina Kirchner decidiu até criar um departamento só para rever fatos históricos e recontá-los à luz do… kirchnerismo! —, está destroçando as instituições. Não consegue sair da lógica do confronto, da revanche, da vingança. E quem está pagando o pato é a democracia.
É uma mentira escandalosa que o país vizinho esteja à frente do Brasil no que diz respeito às instituições. Falso como os índices oficiais da inflação argentina. Falso como a tolerância com a divergência na Argentina. Falso como o amor do kirchnerismo pela democracia. É o que querem para o Brasil? Pelo visto, sim! Não faltam injustiças presentes com as quais os promotores deveriam se ocupar. Não obstante, ao arrepio das leis e de uma clara e inequívoca manifestação do Supremo, tentam nos jogar no passado que nunca passa.
Atenção! Na Argentina ou no Brasil, quem muito luta para encruar o passado está em busca de licença para ser autoritário no presente. Não por acaso, boa parte da esquerda brasileira que está no poder justifica seus crimes — inclusive os financeiros — lembrando a sua condição de “amiga do povo”.
A ação desses procuradores é ilegal. Isso não torna Curió ou qualquer outro de seus alvos pessoas boas ou inocentes. Do mesmo modo, diga-se que os adversários de Curió e assemelhados também não eram flores olorosas. Uma das virtudes da anistia é romper com a lógica da polarização, da luta do “Bem” contra o “Mal”.
A propósito: os sete procuradores envolvidos no caso integram o grupo “Justiça de Transição”. É mesmo?
- o que seria uma “justiça de transição”? Seria aquela que extingue o “transitado em julgado”, de modo que uma decisão pode sempre ser revista, jogando no lixo a segurança jurídica, base da democracia?;
- procurador, agora, passou a fazer parte da “Justiça”? Virou Poder Judiciário?;
- procurador, agora, já se comporta como juiz?
O Brasil — por intermédio de todas as forças políticas que se empenharam na transição — decidiu não ficar refém dos algozes da democracia, estivessem esses algozes de um lado ou de outro. De fato, eles estavam dos dois! Se aquelas leis podem ser ignoradas, então qualquer outra também pode. Será isso a tal “justiça de transição”, aquela sempre sujeita às vontades dos poderosos da hora?
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