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sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Waldo Luís Viana

O CÂNCER E KAFKA

“Existe um perigo para o glorioso que o humilde jamais conhece;

um julgamento para o poderoso que o fraco jamais enfrenta. Vemos isso nos piores ditadores, os Hitlers e Stalins, os Maos e os Amins. Eles se instalam no poder para serem ídolos. Querem mais que poder; querem ser adorados.”

John Eldredge

Waldo Luís Viana*

Coisa incrível essa última fornada de notícias sobre o câncer dos famosos. Até Lula, indestrutível e perfeito, junta-se a Chávez, a Fidel e a uma penca de famosos, abalroados por essa doença terrível, para a qual os médicos não conhecem as verdadeiras causas e só bordejam as suas vis consequências.

Sentimo-nos inermes, nós, o povo, não resguardado por planos de saúde e maiores cuidados médicos, nós, brasileiros, que temos um sistema de saúde pública “quase perfeito”, como nos afirmou peremptoriamente nosso saudoso ex-presidente, quando assistimos pela televisão aberta um programa em noite de domingo (logo nessa noite!), em que nos foi revelado que o tratamento particular de um câncer na laringe fica por volta de 90 mil reais! Realmente os preços da medicina estão pela hora da morte, não é mesmo?

Como é triste ver o trêfego Chávez (“por que não te calas?”), amuado, em Cuba, tratando de sua combalida saúde e tendo que cumprir mandato até 2013? O que dizer, então, da calva estampa de nosso ex-presidente, preparando-se para mais uma dose de quimioterapia, numa doença que parece estar em estado intermediário?

O câncer, meus amigos, é de lascar! Como é democrática a afecção que não distingue ninguém, negro, branco, amarelo, pardo, criança, jovem, maduro ou velho – todos na mesma roda igualitária que não se equipara a qualquer socialismo. Eu posso tê-lo e você também, mas os laboratórios multinacionais e seus tratamentos logo discriminam, como os bancos, os ricos dos pobres.

Jamais poderia pagar os 90 mil reais do tratamento do ex-presidente e lembro-me que, com toda a riqueza, o seu vice não conseguiu resistir a 18 operações e tantas incursões da medicina sobre o corpo humano, onde me parece ela só sabe cortar e seccionar.

Minha mãe morreu de câncer no pâncreas e recordo-me de um especialista que me puxou num canto e me disse: “eu tenho estudado esse troço há dez anos e cada vez mais me convenço de que quanto mais a gente mexe no “bicho”, mais ele fica brabo”. E lá se foi minha mãezinha com a brabeza do bicho...

Franz Kafka, escritor checo, escreveu um grande livro, o Processo (1925), que conta a história de um certo Josef K., julgado e condenado por um crime que ele mesmo ignorava, e fiquei pensando nisso, quando refleti sobre as peripécias do câncer nessa nossa porca civilização que detesta Deus na prática e adora o dinheiro.

Que efeito maldito tem sobre ela a democracia do câncer! Unem-se médicos, a confraria de sábios que não sabem nada para declarar que se pegar o bicho no comecinho dá pra se dar ao paciente uma “sobrevida”. Não é mais vida, são as gotas do veneno da ansiedade escorrendo como suor à espera do inevitável, que é sempre relatado com aquela sinceridade nosocomial: “você tem de seis meses a um ano, talvez dois...”

O ser humano sente-se estupefato por ter de suportar um crime que não cometeu e o seu processo, que lhe arranca a humanidade a cada dia e deita na terra a face orgulhosa dos poderosos. E haja dinheiro para cobrir os custos da porca medicina, que dá de ombros diante do inevitável, principalmente quando o paciente é pobre e desvalido.

Os Josef K. da vida não têm salvação. Não têm câmaras de televisão e cinegrafistas para auscultar seus corações, estão espalhados por corredores de enfermarias apinhadas e sabem muito bem qual será o seu cruel destino.

É um processo kafkiano que não desejo nem para mim, nem para você, nem para ninguém. Tampouco para os famosos e poderosos que querem ser nossos ídolos e bancam seres adorados, tentando desmentir a realidade indesmentível: de que são feitos da mesma argila de nós mesmos, comandados que não podemos gritar, pedindo melhor condição de vida.

Estamos nos trens, nos hospitais, nas filas dos bancos, esbarrando-nos nas ruas apinhadas, no tráfego, nas estações do metrô, mas temos a mesma face de pavor, de que um dia a mórbida doença nos irá tragar, até porque o nosso modo de viver nos aproxima dela. Todos bebemos, fumamos, comemos mal, os alimentos são estandartizados, não são mais puros e livres como deveriam, não mastigamos o quanto deveríamos e o séquito de impropriedades e vícios de nossas vidas nos aproxima do precipício a cada dia.

Creiam que se os ricos pudessem se livrar primeiro do câncer, com certeza o fariam, como nos filmes de catástrofe, em que querem pagar sua alforria para uma ilha distante. Josef K. só tem mesmo direito a seu processo e a se sentir condenado por ser pobre e por ser protegido apenas pela letra morta da Constituição.

O brasileiro curte seu “longo processo” de não ter saúde pública digna, nem terá e observa, mortificado, o desespero dos poderosos, que não podem lutar contra o inelutável. Na garganta, fica um gosto amargo de que se acontecer conosco não adianta nem lutar, porque não há recursos, vontades e as poucas sabedorias que aqui existem estão voltadas para os privilegiados, que mesmo assim, por uma lei funesta, sucumbem...

Estou na fila, calmo e paciente aguardando a minha vez. Só não me preocupo em procurar salvação nesses homens, de apoucada caridade e quase nenhuma ciência. Platão dizia, de que vale todo conhecimento se o homem perder sua alma?

É o que vejo no drama kafkiano do câncer: a alma do homem subjugada e os poderosos a se perguntarem: como pôde acontecer isso logo comigo, eu que sou amado, idolatrado e adorado?

E lamentam, indispostos, terem descoberto ser meras caricaturas de Deus...

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*Waldo Luís Viana é escritor, economista, poeta e sabe bem o que o espera se tiver câncer neste país...

Teresópolis, 24 de novembro de 2011.

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