JUÍZES CONTRA O ESTADO DE DIREITO
Dom, 04 de Dezembro de 2011.
REVISTA VEJA | JUSTIÇA
Para defenderem os invasores da USP, magistrados afirmam que algumas pessoas estão acima da lei
Fundada há pouco mais de dez anos, em 13 de maio de 1991, a Associação Juízes para a Democracia (AJD) se compromete, em seu estatuto, com "o respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do estado democrático de direito". Não deveria ser preciso dizer isso de maneira explícita, em se tratando de juízes, mas está lá. E, estando lá, é motivo mais do que suficiente para que os magistrados, se tiverem alguma honestidade intelectual, se reúnam de imediato e dissolvam a sua entidade. Na semana passada, eles publicaram na internet um documento estarrecedor, que afronta justamente aquilo que prometem respeitar. Não há mistério no conceito de estado democrático de direito. Ele está fundado numa ideia cristalina: a de que todos são iguais perante a lei. E foi isso que os juízes decidiram negar, não nas entrelinhas ou com subentendidos, o que já seriam um escândalo, mas de maneira ululante, como diria Nelson Rodrigues.
O manifesto da AJD foi escrito em solidariedade à minoria de esquerdistas que invadiu e depredou a reitoria da Universidade de São Paulo no começo de novembro. Afirma que eles buscavam apenas "o aprimoramento da ordem jurídica, e não a sua negação". Segue-se um arrazoado assustador: "Não é verdade que ninguém está acima da lei, como afirmam os legalistas e pseudo-democratas: estão, sim, acima da lei todas as pessoas que vivem no cimo preponderante das normas e princípios constitucionais e que, por isso, rompendo com o estereótipo da alienação, e alimentados de esperança, insistem em colocar o seu ousio e a sua juventude a serviço da alteridade, da democracia e do império dos direitos fundamentais".
Convém traduzir. Em abstrato, os auto-intitulados juízes pela democracia asseveram que "jovens alimentados de esperança" estão acima da lei. Uma idéia tão ridícula quanto perigosa. Em concreto, os auto-intitulados juízes pela democracia afirmam que radicais encapuzados, que estocaram coquetéis-molotovs em um prédio público, são livres para fazer o que bem entenderem.
A idéia de um estado regido por leis que alcançam a todos, e não pelo arbítrio de um governante, nasceu no século XVII e levou mais de 200 anos para firmar raízes. É uma conquista da civilização ocidental, justamente por retirar de indivíduos, classes sociais ou partidos políticos o poder de decidir quem está acima da lei. No século XX, as nações que se afastaram desse pressuposto sofreram consequências calamitosas. Como mostra o historiador inglês Richard Overy, tanto Hitler, na Alemanha nazista, quanto Stalin, na União Soviética, contaram com juristas dotados de um funesto desdém pelo império das leis para erigir suas ditaduras. A Alemanha deixou para trás uma extraordinária tradição jurídica ao adotar a máxima de Werner Best, chefe da divisão jurídica ao adotar a máxima de Wener Best, chefe da divisão jurídica da Gestapo, a polícia secreta nazista: "A lei e a vontade do Führer são uma e a mesma coisa". Na União Soviética, Peter Stuchka, um preeminente filósofo do direito, declarou que a revolução bolchevique não significava "a vitória das leis socialistas, mas o triunfo do socialismo sobre todas as leis" (não é errado supor que Stuchka e os juízes da AJD se alimentem da mesma esperança).
Muitos indivíduos que ocuparam o poder sucumbiram, em algum momento, à tentação de acreditar que eles próprios e pessoas de seu círculo estavam acima da lei. Luiz Inácio Lula da Silva fez isso, em 2009, ao dizer que seu colega José Sarney, cercado de denúncias por todos os lados, não poderia ser tratado como "pessoa comum". O Brasil tem hoje instituições democráticas consolidadas. Os juízes - todos eles - estão entre os principais guardiões dessas instituições e do estado de direito no qual elas se alicerçam. É julgando que exercem essa guarda - e não fundando associações políticas. Quem ataca o estado de direito não pode usar toga.
CARLOS GRAIEB
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